Não que estivesse triste, só não sentia mais nada. Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, girou o busto sobre a cintura, apoiando o cotovelo direito no peitoril da janela. Debruçou o rosto na palma da mão, os cabelos lisos caíram sobre o rosto. Para afastá-los, ela levantou a cabeça, e então viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em aquarela, estatizada feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia mais nada, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco parada assim, meio remota, o moço das calças brancas veio se aproximando sem que ela percebesse. Parado ao lado dela, vistos de dentro, os dois pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros procurando bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha. E de repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every day, every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente endurecidos do moço. As memórias que cada um guardava, e eram tantas, transpareceram tão nitidamente nos olhos que ela imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.
— Gosto. Você também?
— Também. Você está olhando a lua?
— Quase cheia. Em Virgem.
— Amanhã faz conjunção com Júpiter.
— Com Saturno também.
— Isso é bom?
— Eu não sei. Deve ser.
— É sim. Bom encontrar você.
— Também acho.
— Você gosta de Júpiter?
— Gosto. Na verdade “desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra”.
— Que é isso?
— Um poema de um menino que vai morrer.
— Como é que você sabe?
— Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.
— Hein?
(Silêncio)
— Você tem um cigarro?
— Estou tentando parar de fumar.
— Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
— Você tem uma coisa nas mãos agora.
— Eu?
— Eu.
(Silêncio)
— Como é que você sabe?
— O quê?
— Que o menino vai se matar.
— Eu não sei nada.
— Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.
— Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.
— Ninguém compreende.
— Às vezes sim. Eu te ensino.
— Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também. Do poema “Vazio na carne”, de Henrique do Vaile.
— Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?
— Você tomou alguma coisa?
— O quê?
— Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.
— Não tomei nada. Não tomo mais nada.
— Nem eu. Já tomei tudo.
— Tudo?
— Cogumelos têm parte com o diabo.
— O ópio aperfeiçoa o real.
— Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.
(Silêncio)
— Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.
— Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.
— Alguma coisa se perdeu.
— Onde fomos? Onde ficamos?
— Alguma coisa se encontrou.
— E aqueles guizos?
— E aquelas fitas?
— O sol já foi embora.
— A estrada escureceu. Mas navegamos.
— Sim. Onde está o Norte?
— Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.
(Silêncio)
— Você é de Virgem?
— Sou. E você, de Capricórnio?
— Sou. Eu sabia.
— Eu sabia também.
— Combinamos: terra.
— Sim. Combinamos.
— Amanhã vou embora pra Paris.
— Amanhã vou embora pra Natal.
— Eu te mando um cartão de lá.
— Eu te mando um cartão de lá.
— No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.
— No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.
(Silêncio)
— Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada ao meu lado, olhando de perfil.
— Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.
— Vamos nos ver?
— No teu chá. No meu chá.
(Silêncio)
— Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
— Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
— Vou te escrever carta e não mandar.
— Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
— Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
— Vou ver Saturno e me lembrar de você.
— Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
— O tempo não existe.
— O tempo existe, sim, e devora.
—Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
— Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
— E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.
(Silêncio)
— Mas não seria natural.
— Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
— Natural é encontrar. Natural é perder.
— Linhas paralelas se encontram no infinito.
— O infinito não acaba. O infinito é nunca.
— Ou sempre.
(Silêncio)
— Tudo isso é muito abstrato. Está tocando Kiss, kiss, kiss. Por que você não me convida para dormirmos juntos.
— Você quer dormir comigo?
— Não.
— Porque não é preciso?
— Porque não é preciso.
(Silêncio)
— Me beija.
— Te beijo.
Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, apertou os dedos da mão direita na porta aberta do elevador e atravessou o saguão gelado, saindo para a rua. Apoiou-se no poste da esquina, o vento esvoaçando os cabelos, e para evitá-lo ele então levantou a cabeça e viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Visto assim parecia não um moço vivendo, mas pintado num óleo de Gregório Gruber, tão nítido estava ressaltado contra o fundo da avenida, e assim estava, mas sem compreender, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco, a moça debruçou-se na janela lá em cima e gritou alguma coisa que ele não chegou a ouvir. Parado longe dela, a moça visível apenas da cintura para cima parecia um fantoche de luva, manipulado por alguém escondido, o moço no poste agitando a cabeça, uma marionete de fios, manipulada por alguém escondido. De repente um carro freou atrás dele, o rádio gritando “se Deus quiser, um dia acabo voando”. Na cabeça dele soaram cinco tiros. De onde estava, não conseguiria ver os olhos da moça. De onde estava, a moça não conseguiria ver os olhos dele. Mas as memórias de cada um eram tantas que ela imediatamente entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante em que ele atravessou a avenida sem olhar para trás.