segunda-feira, 31 de maio de 2010

People come and go...

(...)
Não que estivesse triste, só não sentia mais nada. Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, girou o busto sobre a cintura, apoiando o cotovelo direito no peitoril da janela. Debruçou o rosto na palma da mão, os cabelos lisos caíram sobre o rosto. Para afastá-los, ela levantou a cabeça, e então viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em aquarela, estatizada feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia mais nada, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco parada assim, meio remota, o moço das calças brancas veio se aproximando sem que ela percebesse. Parado ao lado dela, vistos de dentro, os dois pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros procurando bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha. E de repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every day, every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente endurecidos do moço. As memórias que cada um guardava, e eram tantas, transpareceram tão nitidamente nos olhos que ela imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.

Você gosta de estrelas?
Gosto. Você também?
Também. Você está olhando a lua?
Quase cheia. Em Virgem.
Amanhã faz conjunção com Júpiter.
Com Saturno também.
Isso é bom?
Eu não sei. Deve ser.
É sim. Bom encontrar você.
Também acho.
(Silêncio)
Você gosta de Júpiter?
Gosto. Na verdade “desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra”.
Que é isso?
Um poema de um menino que vai morrer.
Como é que você sabe?
Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.
Hein?
(Silêncio)
Você tem um cigarro?
Estou tentando parar de fumar.
Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
Você tem uma coisa nas mãos agora.
Eu?
Eu.
(Silêncio)
Como é que você sabe?
O quê?
Que o menino vai se matar.
— Sei muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.
Eu não sei nada.
Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.
Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.
Ninguém compreende.
Às vezes sim. Eu te ensino.
Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também. Do poema “Vazio na carne”, de Henrique do Vaile.
Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?
(Silêncio)
Você tomou alguma coisa?
O quê?
Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.
Não tomei nada. Não tomo mais nada.
Nem eu. Já tomei tudo.
Tudo?
Cogumelos têm parte com o diabo.
O ópio aperfeiçoa o real.
Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.
(Silêncio)
Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.
Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.
Alguma coisa se perdeu.
Onde fomos? Onde ficamos?
Alguma coisa se encontrou.
E aqueles guizos?
E aquelas fitas?
O sol já foi embora.
A estrada escureceu. Mas navegamos.
Sim. Onde está o Norte?
Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.
(Silêncio)
Você é de Virgem?
Sou. E você, de Capricórnio?
Sou. Eu sabia.
Eu sabia também.
Combinamos: terra.
Sim. Combinamos.
(Silêncio)
Amanhã vou embora pra Paris.
Amanhã vou embora pra Natal.
Eu te mando um cartão de lá.
Eu te mando um cartão de lá.
No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.
No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.
(Silêncio)
Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada ao meu lado, olhando de perfil.
Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.
Vamos nos ver?
No teu chá. No meu chá.
(Silêncio)
Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
Vou te escrever carta e não mandar.
Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
Vou ver Saturno e me lembrar de você.
Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
O tempo não existe.
O tempo existe, sim, e devora.
Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.
(Silêncio)
Mas não seria natural.
Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
Natural é encontrar. Natural é perder.
Linhas paralelas se encontram no infinito.
O infinito não acaba. O infinito é nunca.
Ou sempre.
(Silêncio)
Tudo isso é muito abstrato. Está tocando Kiss, kiss, kiss. Por que você não me convida para dormirmos juntos.
Você quer dormir comigo?
Não.
Porque não é preciso?
Porque não é preciso.
(Silêncio)
Me beija.
Te beijo.
(...)
Não que estivesse triste, só não compreendia o que estava sentindo.
Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, apertou os dedos da mão direita na porta aberta do elevador e atravessou o saguão gelado, saindo para a rua. Apoiou-se no poste da esquina, o vento esvoaçando os cabelos, e para evitá-lo ele então levantou a cabeça e viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Visto assim parecia não um moço vivendo, mas pintado num óleo de Gregório Gruber, tão nítido estava ressaltado contra o fundo da avenida, e assim estava, mas sem compreender, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco, a moça debruçou-se na janela lá em cima e gritou alguma coisa que ele não chegou a ouvir. Parado longe dela, a moça visível apenas da cintura para cima parecia um fantoche de luva, manipulado por alguém escondido, o moço no poste agitando a cabeça, uma marionete de fios, manipulada por alguém escondido. De repente um carro freou atrás dele, o rádio gritando “se Deus quiser, um dia acabo voando”. Na cabeça dele soaram cinco tiros. De onde estava, não conseguiria ver os olhos da moça. De onde estava, a moça não conseguiria ver os olhos dele. Mas as memórias de cada um eram tantas que ela imediatamente entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante em que ele atravessou a avenida sem olhar para trás.

[O dia em que Júpiter encontrou Saturno - Caio Fernando Abreu]

sábado, 29 de maio de 2010

Deixa a calmaria pra depois...




Não tenho tempo a perder por favor quando chegar esteja inteiro ocupe espaço e seja pleno me impeça de pensar no amanhã e em outras tarefas suspensas me traga pro agora daquele momento onde você mora me faça esquecer o cansaço me traga um abraço me fale de coisas que há tempos não nos permitimos fazer e me convença a transgredir a hora de dormir como boa-moça que nunca fui e estou me dê um porre acenda todos os meus cigarros e me ache bonita me fale sobre as gostosuras da vida esqueça os pronomes começando as frases que nos despejamos quando entusiasmados e cheios de assunto depois se cale e me ponha a dançar me faça chorar me lembrando que estou pura razão me incentive a querer mudar me relembre essa dádiva de cama-leoa me ajude a fazer as malas me tire de casa me convença a trancar a porta por fora me mande embora dessa covardia me traga de volta praquele meu sonho bonito. Me traga: de novo fumaça, etérea, no espaço, sonora... de novo tão livre, tão solta.

E faça amor comigo sem pressa. Com todas as vírgulas que ignoramos.

Mais um texto lindo de Marla de Queiroz.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Poucas pessoas me encantam...



"Hoje decidi que estou prestes a assumir meu coração vazio. Não decidi isso movida por uma grande coragem ou por um momento de iluminação. Nada grandioso aconteceu. Apenas sinto que dei um pequeno, quase imperceptível, passo para uma vida mais madura. Eu simplesmente não suporto mais pintar o céu de cor-de-rosa para achar que vale a pena sair da cama. Não posso mais emprestar mistério ao vazio, vida ao oco, esperança ao defunto, saliva ao seco. Não posso mais emprestar meus desejos para que pessoas se tornem desejáveis. E, finalmente, não posso mais inventar amor só para poder falar dele."

E ninguém é interessante, e eu - pra ser sincera - não gosto de ninguém.

sábado, 22 de maio de 2010

Dos gostos...



Iria embora hoje mesmo. Pra algum lugar, não sei onde. Sempre tive uma alma exploradora e sedenta de liberdade. Navegar longe de portos seguros. Pegar os ventos da aventura em minhas velas. Quero beber de todas as águas que a vida me permitir. Experimentar, ousar, sonhar é viver. Tenho um par de asas e uma montanha de descobertas pra fazer a escalada. E sorte minha que vim ao mundo assim.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Dos abismos...



Essa solidão abissal que habita agora no final de cada tarde tua, esse tempo derramado em conta-gotas, as lembranças tão vivazes de um passado intenso, um agora que só quer ser triste e oco. Tua angústia sussurrada pros amigos, o seu corpo a tremer sem agasalhos, a tristeza elegeu neste momento teu olhar pra ser a fonte dos orvalhos. E parece que jamais serás a mesma e que nada mais terá sentido como antes, mas assim como é líquida essa tristeza, essas águas são dinâmicas e fluidas. Então deixa que as coisas se renovem, e que as perdas tenham mais de um sentido, que os vazios te ofereçam mais espaço, pra que a vida te compense com o impossível. E permita que a alegria se aproxime, e que traga mais calor para os teus dias, quando tudo nos parece um desolo, é possível ainda assim, ser poesia. Seja forte, siga em frente, respire fundo, e perceba a importância de se ter braços vazios, pra que se possa ter espaço em si para abraçar o mundo.

Um texto tão belo de Marla de Queiroz, uma das minhas invejas literárias.

Incrível como ela consegue transformar flores em poesia.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Not today...


"Amanhã fico triste... Amanhã!
Hoje não... Hoje fico alegre!
E todos os dias, por mais amargos que sejam, eu digo:
Amanhã fico triste, hoje não..."

Poema encontrado na parede de um dos dormitórios de crianças do campo de extermínio nazista de Auschwitz.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Promete?


Segurou minha mão, me abraçou, me ajudou, me fez rir, me fez falar como nunca falei antes, contei segredos, compartilhei momentos, brinquei, abracei, beijei muito, chorei junto, briguei, brigamos, me fez fazer e falar coisas que não queria, me ensinou a não ser cabeça dura, aprendi, me fez correr, pular, gritar, dançar, me fez enxergar o errado e até mesmo o óbvio que eu não queria ver, me fez feliz em todo momento. O tempo fez intenso. Viver separados? Jamais isso passava em nossas cabeças. Um novo ser, ou vários? Coração dividiu. Esperei a prova. Sumiu. O coração escolheu um só lado. Cada um tem sua escolha. Tudo que é verdadeiro, é eterno, é amor. E de repente soltou minha mão, e me deixou ir...

Ou melhor: E de repente soltou minha mão, e partiu...

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O mundo é um moinho


Ainda é cedo amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção querida
Embora saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões à pó.

Preste atenção querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás a beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés



"Preciso pegar minhas coisas e partir... viajar, esquecer, e talvez amar."